30 de dezembro de 2020

Love and Monsters (2020)


Quando em 2010, a série The Walking Dead mudou a forma como o cinema e a televisão abordaram os zombies, o seu rescaldo ainda é um que está a ser fortemente sentido e difícil de livrar na última década, muito devido à saturação do género. Da mesma forma que Sangue Quente fez o seu sucesso na sua comédia a roçar na paródia, Love and Monsters, realizado por Michael Matthews, vem para desanuviar dos panoramas pós-apocalípticos.

Quando um asteróide em direcção à Terra é destruído, as consequências dos misseis utilizados condenaram os nossos habitantes, quando a chuva química provocou que todos os animais selvagens sofressem uma mutação, tornando-os em monstros gigantes. Acompanhamos Joel (Dylan O'Brien), um jovem que vive numa colónia, protegido pelo grupo que lhe acolheu durante estes incidentes, mas separado há sete anos da sua namorada Aimee (Jessica Henwick). Nisto, Joel decide embarcar na aventura da sua vida, ao viajar 85 milhas até à colónia de Aimee, onde a morte está à espreita.


Este é possivelmente um dos melhores papéis de Dylan O'Brien desde Teen Wolf, num ambiente onde o actor é capaz de balancear perfeitamente o seu charme casual e cómico, ao mesmo tempo que é capaz de manter uma boa postura durante toda a acção e aventura, trazendo o melhor dos dois mundos dele; ao qual se junta Boy, um cão muito simpático, da qual criam uma ligação muito forte e que dá outro impacto a este filme.

O argumento, escrito por Brian Duffield (The Babysitter) e Matthew Robinson (Dora e a Cidade Perdida), demonstram ser o par perfeito para criarem um universo o sentido de aventura e o sentido de humor estão equilibrados, ao qual é importante destacar que a narrativa é um excelente exemplo da estrutura clássica da chamada "Jornada do Herói", podendo ver aqui um crescimento claro da personagem principal.


Se não existe maior motivação que o amor, por outro lado, os monstros jogam ao mesmo nível, sentido cada confrontação como uma batalha de grande importância, capaz de ameaçar a vida e o rumo da história, onde vemos Joel a aprender e aplicar as suas capacidades com cada uma que tem que ultrapassar

Assim, Love and Monsters é uma comédia aventureira, a levar a vida com alguma levidade, onde a acção intensa e os risos calorosos oferecem espaço para respirar e, acima de tudo, divertir; enquanto aborda a sua narrativa de uma forma sólida, numa viagem autêntica em vermos um zero a tornar-se no derradeiro herói.

No meio disto tudo, ainda é capaz de ser mais interessante do que a adaptação de Monster Hunter...

Nota Final: 4/5

28 de dezembro de 2020

Shithouse (2020)


Fazer um filme não é uma tarefa fácil, ainda mais expor uma história que é intensamente pessoal e traduzir isso em algo que sequer se assemelhe a algo próximo de cinema. Mas, de alguma forma, Cooper Raiff atirou-se cegamente ao desafio ao escrever, realizar e protagonizar a sua primeira longa-metragem, Shithouse.

Alex (Raiff) é um estudante numa universidade, sentido-se sozinho e afastado de tudo e de todos durante o seu tempo por lá. Uma noite, ele conhece Maggie (Dylan Gelula), uma residente assistente na residência universitária que teve um dia péssimo e lhe convida para passarem tempo juntos. 


Mais que tudo, Shithouse é a representação de todos os introvertidos e outros afins, incapazes de fazer conexões activamente pela faculdade, sobretudo se for um ambiente totalmente novo. Existem milhares de Alex pelo mundo no mesmo caso, abrido desde já o jogo perante o tipo de vida que o jovem vive diariamente. O elemento de novidade, em forma de uma rapariga bela, que acaba por surgir um pouco do nada, é uma demonstração em como a vida não-planeada, composta por momentos espontâneos, acabam por ser aqueles que nos fazem sentir mais felizes. 

A direcção de fotografia de Rachel Klein, mostra toda a experiência de uma relação universitária na sua forma mais verdadeira e genuína, intimista e que expõe os medos de qualquer relação, entre duas pessoas que inesperadamente se encontraram. É um amor como muitos, onde Cooper Raiff explora de forma coerente a simplicidade aparente da sua premissa, que podemos admirar como um exemplo de como as coisas acontecem por alguma razão.


Ainda que por vezes caia nas trupes do costume, levadas a cabo pelas comédias românticas da geração actual, é todo o texto de diálogos que faz com que Shithouse se destaque dos outros demais, onde cada frase marca a narrativa, junto com uma pitada de comédia, onde não falta sequer uma referência a De Repente, Já nos 30!

Com isto, Shithouse é uma obra onde vemos Cooper Raiff a revelar-se como uma dos grandes estreantes do ano, num filme que grita alto para todos aqueles que estão apenas a tentar viver, à procura daquela experiência única que lhes irá mudar para sempre as suas vidas. Jamais ousando seguir por clichés, por vezes a perspectiva da vida real é mais que suficiente para contar uma história que vem de um lugar próximo, onde conseguimos ver Raiff e Gelula de alma e coração cheio.

Nota Final: 4/5

The Cleansing Hour (2020)


Quando em 2016 a dupla Damien LeVeck e Aaron Horwitz impressionaram os fãs do cinema de terror com a sua curta homónima, integrante do programa de curtas do site da especialidade Bloody Disgusting, foi muito fácil ver que aquela história tinha muito mais para contar. Demorou cerca de três anos até que The Cleansing Hour chegasse agora numa longa-metragem, onde a espera parece ter valido muito a pena.

Father Max (Ryan Guzman) é um "padre" que fazer "exorcismos" ao vivo via as suas livestreams, com uma legião de seguidores muito fiel e fanáticos pela sua missão religiosa. Afinal, Max está a salvar pessoas dos seus demónios; mas na verdade não passa de uma fraude narcisista em busca de fama, com uma plataforma que não passa a nada mais que mero entretenimento, criado juntamente com o seu melhor amigo Drew (Kyle Gallner). A certo dia, o que era suposto ser apenas mais uma transmissão torna-se no pior pesadelo de qualquer um, quando a "vítima" é Lane (Alix Angelis), namorada de Drew, que é possuída por um verdadeiro demónio, testando ao limite o seu espectáculo.


O que poderia ser apenas mais um filme com exorcismos, nada podia preparar-nos para o que vinha, tomando de assalto qualquer preconceito que tenhamos com este sub-género de filmes, onde o demónio é verdadeiramente assustador e, através de uma multitude de truques na manga, mostram muito bem a forma que LeVeck e Horwitz expandiram a sua curta-metragem para um dos melhores filmes do ano.

Max tem uma hora para mostrar aquilo do que é realmente feito, à mercê de um demónio que está disposto fazer refém uma rapariga inocente, sem escrúpulos ou medo, numa obra repleta de diálogos intensos e onde o terror chega-nos debaixo da pele. Até a abordagem da exploração do tópico das redes sociais, que frequentemente não passam da futilidade do que realmente são, é em The Cleansing Hour utilizado para causar dor e sofrimento ao impostor.

Mesmo quando o filme envereda por outros caminhos, estes mais dentro da investigação, que se assemelham ao melhor episódio de Caçadores de Demónios de sempre, este é capaz tornar todos os elementos em verdadeiros momentos de um sonho muito mau, sem o mínimo de esforço.


Ainda que por vezes os efeitos especiais parecem estranhos, não é suficiente para arruinar a experiência, sobretudo com um elenco que cumpre e bem os seus papéis; mas é Alix Angelis quem leva o prémio pelo desempenho multi-facetado e aterrador.

Com isto, The Cleansing Hour é um dos melhores exemplos em como tornar um conceito provado em algo que vai muito para além das expectativas, virando ao contrário todos os clichés esperados deste tipo de filme, provando que com alguma originalidade é possível surpreender e deixar-nos com um medo muito verdadeiro.

Nota Final: 5/5

Spontaneous (2020)


Brian Duffield é talvez um dos argumentistas do qual deveremos prestar muita atenção nos próximos anos, tendo escrito The Babysitter e a sua sequela para a Netflix. Desta vez, o mesmo estreia-se na cadeira de realizador com Spontaneous, levando mais uma vez um misto de terror com comédia, de uma forma que apenas ele sabe fazer; inspirando-se num livro de Aaron Starmer.

Mara (Katherine Langford) é uma estudante do liceu que não sabe bem como quer continuar a sua vida, mas vê-se forçada a mudar de perspectiva quando os seus colegas de turma começam a explodir espontâneamente, sem qualquer explicação. Aterrorizada, ela e a sua amiga Tess (Hayley Law), começam a lidar com o fenómeno estranho, onde pelo meio Mara encontra o amor com Dylan (Charlie Plummer), que perante os eventos, decidiu arriscar em exprimir os seus sentimentos.


Na verdade, Spontaneous nunca se contém quando quer ser horrífico, com baldes de sangue a serem explodidos sem meias-medidas, onde a sua natureza obscura é coberta por diálogos repletos de comédia negra, que apesar que não serem politicamente correctos, têm uma tendência de serem hilariantes; pelo menos durante toda a situação, da mesma forma que as coisas podem ficar muito assustadoras, com fluidos corporais e bocados de carne humana por todo o lado!

No entanto, pelo meio está uma belíssima história de amor adolescente, que frente à tragédia, são motivados a aproveitarem cada momento ao máximo, onde piadas sarcásticas são expressões amorosas, que na verdade apenas servem de cobertura para sentimentos de medo e solidão, num equilíbrio natural. Mesmo durante uma altura mais conflituosa, onde o riso parece não conseguir superar os sentimentos de negatividade, Spontaneous consegue manter o seu espírito vivo e contagiar-nos com a esperança que tudo se vai resolver, duma forma ou doutra.


Se por um lado a dupla de Langford e Plummer fazem um par perfeito, é com o argumento e realização de Duffield que o filme é elevado a um estado novo, onde literalmente tudo pode acontecer; e quando acontece, é capaz de nos deixar a rir ou inundar os nossos pensamentos com tristeza, gerindo incrivelmente bem a inteligência emocional que quer passar.

Assim, Spontaneous é uma das grandes surpresas de 2020, demonstrando-se como um esforço genuíno em mostrar que no meio de tanto medo e incerteza, é possível encontrar alguma luz e esperar que tudo corra pelo melhor; e se for preciso rirmos um pouco para não chorar, tanto melhor.

Nota Final: 4/5

23 de dezembro de 2020

No Escape (Follow Me) | #SemSaída (2020)

Vindo da eterna saga do cinema de terror pós-moderno, onde a Internet e as redes sociais têm que, de alguma forma, ser o centro da tecnologia utilizada para causar medo, vem #SemSaída (com hashtag incluído e tudo), escrito e realizado por Will Wernick.

O filme conta a história de Cole (Keegan Allen), um pseudo-YouTuber que irá celebrar o seu 10º aniversário de carreira com uma surpresa numa viagem que o leva até à Rússia. Com ele está os seus amigos Erin (Holland Roden), Dash (George Janko), Thomas (Denzel Whitaker) e Sam (Siya), que o levam até um escape room, o que esperam ser uma das experiências mais únicas de sempre, uma promessa que Cole nunca irá esquecer.


Ignorando o facto que Wernick realizou um filme sobre um escape room em 2017 - titulado Escape Room e não confundir com o Escape Room de 2019, este realizado por Adam Robitel - é de estranhar que volte a bater na mesma tecla, num ambiente demasiado semelhante para ser coincidência. Ou afinal, Wernick está numa missão de adaptar para cinema as inúmeras experiências proporcionadas pelos escape rooms do mundo. Mas muito disto não bate certo.

A dada altura, um dos grunhos russos diz aos nossos amigos "por mais verdadeiro que possa parecer, vocês estão em segurança", como se uma frase tão dramática não fizesse soar alarmes na cabeça de qualquer um. Levando isto e junta-se uma ingenuidade estúpida, quase estereotipada, de um certo tipo de YouTuber que tanto amamos odiar; e, na verdade, Cole é mesmo muito estúpido. Ou pelo menos assim o aparenta, pela forma que navega pelos puzzles mortais.

Mesmo quando o filme tenta impressionar com as suas reviravoltas óbvias, o facto de nem sequer se esforçar a fazer algo minimamente original é desapontante, ao ponto de quase gritar "plágio" a cada 5 minutos.

SAW e Hostel ficariam muito tristes ao verem o que as suas obras acabaram por inspirar, com #SemSaída a roubar descaradamente do mesmo género de filmes que deseja homenagear ou sequer mostrar influência. Até SAW, que acabou por criar todo um universo de sequelas, descaindo para um contexto nonsense do cinema comercial, mantém a sua integridade com a sua coerência e capacidade de reconhecer que não basta só fazer número. De alguma forma, nem a Blumhouse tocaria neste filme, nem com um pau de 5 metros.

E nós já vimos a Blumhouse a fazer coisas muito más. Minimamente toleráveis. Mas más...

Nota Final: 0.5/5 (originalmente 1/10)

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Originalmente publicado em Central Comics a 23 de Dezembro de 2020.

9 de dezembro de 2020

Jiu Jitsu (2020)


Em 2017, Dimitri Logothetis, realizador conhecido pelos seus filmes Kickboxer; juntamente com Jim McGrath, lançaram a novela gráfica que representasse a sua carta de amor perante as artes marciais que tanto amam. Bastaram três anos até que uma adaptação cinematográfica de Jiu Jitsu, liderada pela mesma dupla, chegasse ao grande ecrã.

Quando Jake (Alain Moussi), um guerreiro com amnésia regressa ao seu ponto de partida para lutar contra um poderoso alienígena, Brax (Ryan Tarran), este terá que contar com o resto do seu clã de lutadores profissionais, entre eles Kueng (Tony Jaa), Harrigan (Frank Grillo), Forbes (Marrese Crump) e Carmen (JuJu Chan), para o derrotar. Pelo meio, também está Wylie (Nicholas Cage), que é o grande mestre no meio disto tudo.

Se a premissa soa tão nonsense quanto aparenta, é porque Jiu Jitsu é exactamente aquilo que esperamos dele: quase duas horas de lutas coreografadas com alguns elementos de qualquer coisa semelhante a ficção científica, ou algo do género…


Olhando para o elenco, este composto quase todo ele por actores com experiência comprovada fora do cinema nas artes marciais, inclusive Tarren, que recentemente foi considerado como um dos melhores duplos da actualidade, temos Nicholas Cage a fazer de Nicholas Cage como se fosse uma personagem tipo Raiden de Mortal Kombat, mas com um orçamento mais limitado. No entanto, ver o actor a pseudo-lutar é uma experiência de deixar qualquer um a querer desviar o olhar do desastre que está perante nós.

Naturalmente, o filme acaba por ser tolo na sua íntegra, com coreografias visivelmente artificiais e com momentos de câmara lenta e efeitos visuais a um nível de filme de estudantes. Jiu Jitsu até tenta abordar a ideia de cenas vistas na primeira pessoa, relembrando-nos que elas funcionam tão melhor nos videojogos que nos filmes.


É triste vermos talentos como estes a serem gastos num filme aleatório, com uma futilidade cujo respeito pela modalidade é quase nula, sobretudo quando existem exemplos que promovem de uma forma mais interessante e criativa as artes marciais, como Gareth Evans, que já trabalhou com Tony Jaa no brilhante The Raid – Redenção, provando que é possível oferecer algo incrível dentro do género, para além dos filmes básicos que continuam a invadir os videoclubes, protagonizados por actores que recusam a ideia de reforma.

Jiu Jitsu não é mau, é terrível. É um terrível no sentido que é divertido vê-lo falhar miseravelmente a tentar ser algo mais do que é. Há o adicional de, se chegarmos ao fim, esperamos receber algum tipo de recompensa, nem que essa seja um pontapé na cara por qualquer um destes actores e artistas marciais. Fora isso, a única coisa que se perde é tempo, sendo mais interessante reunir estes talentos todos num ringue.

Nota Final: 1/5 (originalmente 2/10)

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Originalmente publicado em Central Comics a 9 de Dezembro de 2020.

8 de novembro de 2020

Possessor (2020)

Quando Brandon Cronenberg lançou em 2012 a sua primeira longa-metragem, Antiviral, as comparações como as expectativas que o seu filme estivesse ao nível daqueles feitos pelo seu pai, David, foram muitas. Afinal, ser o filho de um dos realizadores mais reconhecidos pela proliferação de um dos mais grotescos sub-géneros do terror, o chamado body horror, não seria fácil. Foi com o sucesso de Antiviral que o mundo se apercebeu que a maçã não cai muito longe da árvore, mas Brandon foi mais longe do que apenas seguir as pisadas do seu parente; iniciou um caminho todo seu. Foram precisos oito anos até que este fizesse o seu regresso, desta vez com Possessor.

Tasya Vos (Andrea Riseborough) é uma agente de uma organização secreta, que utiliza a tecnologia de microchips cerebrais para inabitar o corpo de outros, tornando-os em assassinos natos para uma clientela disposta a pagar o preço. O seu mais recente trabalho, esta irá habitar a mente de Colin Tate (Christopher Abbott), para assassinar a sua namorada, Ava (Tuppence Middleton) e o pai dela, John (Sean Bean), abrindo caminho para um novo CEO de uma empresa de tecnologia.

Cronenberg apresenta assim uma das obras mais horríficas do inicio da década, subtilmente levada pela narrativa obscura, repleta de sangue e momentos mais fora-da-caixa; demonstrando a sua capacidade inata de contar uma história que causa calafrios e demonstrar perfeitamente o seu sentimento. Talvez uma das suas maiores provas é ser um alto-conceito sangrento, algo que muitos provavelmente não achariam que seria uma boa combinação, mas que o realizador faz na perfeição, sem qualquer esforço. Desde uma palette de cores que podem ir do desinteressante para o alarmante em tempo recorde, às decisões chave das personagens e à forma de como a tecnologia funciona, tudo em Possessor claramente tem um propósito muito real.

Num momento em que o cinema de terror está surgir com um interesse mais nuance, Possessor poderia, com muita facilidade, ser um episódio de Black Mirror; com algo altamente intrigante à medida que vamos percebendo como a tecnologia poderá ser explorada para benefício dos mais ricos e que o futuro próximo será, de facto, o nosso fim.

Deste modo, Possessor é um dos filmes mais incríveis do ano, causando todo o tipo de sentimentos mais no cérebro, com sequências de deixar qualquer um boquiaberto, existindo espaço para toda a experimentação que o sub-género está associado. Este não é um filme qualquer, com uma intenção clara que causar a maior impressão possível, seja que, em alguma altura, pareça um truque dissimulado. Apenas desejamos que não demore mais oito anos a regressar ao grande ecrã.

Nota Final: 5/5

29 de setembro de 2020

Antebellum | Antebellum – A Escolhida (2020)



Em 2017, Jordan Peele abriu as portas para um sub-género dentro do cinema, com Foge, classificado como algo entre o drama e o terror (ou a comédia e o musical, caso estejam a ser considerados para os Globos de Ouro), onde a crítica política-social demonstrou um cenário de análise do racismo no Estados Unidos. Esta abertura permitiu que um dos seus produtores, Sean McKittrick, seguisse o seu reportório recente, juntando-se à dupla de argumentistas e realizadores, Gerard Bush e Christopher Renz, que se estreiam nas longas-metragens em Antebellum – A Escolhida.

Pela primeira vez em muitos anos, a impressão conflituosa entre o filme e o seu material promocional, que passam duas ideias muito distintas entre elas, dificulta explicar a narrativa de uma forma que não revele a sua reviravolta. Mas é possível descrever o filme ao conhecermos Veronica Henley (Janelle Monáe), uma autora com muito sucesso, que se vê numa situação bizarra, ao se encontrar no século XVIII, como uma escrava numa plantação de algodão, em plena guerra civil.


Pondo de parte todo o mistério aparente do filme, é possível dividirmos Antebellum – A Escolhida em alguns momentos minimamente interessantes, sobretudo o seu retrato desconfortável da escravatura dos negros, ainda mais quando temos em conta o seu contexto político-social em pleno ano de eleições nos Estados Unidos; relembrando-nos dos actos cruéis da Confederação e os seus generais. São imagens fortes, intensas e que geram revolta, mas o filme não é só feito deste retrato.

No presente, somos apresentados a Veronica, uma mulher forte, cujo sucesso gera uma discussão, e recebe o ódio dos tais haters, que não podiam fazer falta. No entanto, o filme reduz toda a importância actual a sequências que fingem querer assustar, ou pior, imitar os filmes de terror que tenta invocar nas suas ideias. É igualmente frequente vermos um conjunto de cenas irrelevantes, que quebram o ritmo do filme e nos deixa a pensar como é que existe tempo na sua duração para vermos as muitas interações fúteis, antes de nos atropelar com a reviravolta, que é mais confusa do que propriamente chocante.


Enquanto que Monáe carrega às costas uma obra que a mesma admite catártica, e que é visível durante as quase duas horas de filme; o resto do elenco, Jena Malone e Eric Lange inclusive, não passam de meras desculpas para justificar os actos hediondos que vemos e muito esforçam tirar o pior de nós para fora. Bush e Renz provam que sabem realizar, com uma cena inicial impressionante, e claramente têm boas ideias, sendo é necessário reconhecer que elas o são; mas a sua execução é deitada à terra pelas péssimas decisões executivas, sobretudo na montagem, que arruína a experiência assim que apanharmos em flagrante delito aquilo que o filme está a tentar impor

Antebellum – A Escolhida podia ter sido um filme muito decente, cuja mensagem poderia gritar bem alto para a atenção a ter perante um país que está a passar uma das piores crises políticas da sua história, mas a tentativa de ser mais inteligente cai assim que percebermos que estes momentos têm um valor a nível narrativo praticamente nulo. Talvez aquilo que mais irritação causa é ao aperceber que estas consequências vêm de uma complicação desnecessária de estilo, distraindo da substância razoável que o filme oferece.

Nota Final: 2/5 (originalmente 4/10)

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Originalmente publicado em Central Comics a 29 de Setembro de 2020.

20 de setembro de 2020

Rent-a-Pal (2020)


Num tempo longínquo, muito antes do Tinder, os serviços de matchmaking era à base de VHS manhosas, onde as pessoas apresentavam-se num curto vídeo, esperando que outro ser humano eventualmente lhes ache interessante. Era assim que se faziam as coisas nos Estados Unidos no inicio dos anos '90, como pano de fundo da estreia de Jon Stevenson nas longas-metragens com Rent-a-Pal.

David (Brian Landis Folkins) é um quarentão solteiro, a viver na cave da casa da sua mãe demente Lucille (Kathleen Brady), da qual ele toma conta. David aparenta ser um homem perdido, sem um objectivo de vida, mas que procura uma alma gémea através do serviço Video Rendezvous. Um dia, David pega numa cassete com o título Rent-a-Pal, um filme onde Andy (Wil Wheaton) é uma espécie de amigo virtual, tendo uma conversa pré-concebida com quem vê. Naturalmente, David sente uma grande ligação por Andy, ou pelo menos esta versão dele; não sabendo o caos que este trará para a sua vida.


Este foco em Andy, o homem na televisão, olhado como um amigo, disposto de estar de braços abertos e ser uma boa companhia para David, preenche-lhe um vazio que, de alguma forma, não consegue na vida real; procurando conforto para a sua mente fragilizada, encontrando-a numa fita. Por outro lado, a encarnação de Wheaton, faz dele talvez um dos vilões mais simpáticos dos últimos anos. 

Rent-a-Pal prova assim, ser um conto obscuro sobre um homem em busca de uma forma de felicidade, incapaz de ter sucesso na vida. David vai mais longe, ao partilhar uma história amorosa que lhe correu mal, quando era mais novo e trocava notas com uma rapariga, mostrando-nos como o mundo o castigou. Este momento está inserido numa sequência de 20 minutos onde vemos a relação entre Andy e David a florescer a um patamar quase divino, onde este não consegue ver mais a linha de o que é verdadeiro e o que é virtual, sendo absolutamente arrepiante.


O facto de o filme se passar nos anos '90, também adiciona um contexto retro, abordando um tema que hoje é, grande parte dele, tão impessoal e concentrado nas redes sociais, onde também podemos encontrar exemplos tanto ou quanto extremistas como David a desabafarem sobre como a culpa é das mulheres que são uns falhados, em sítios como chan sites ou fóruns, exprimindo uma frustração de futilidade. Retirada a componente de internet, a parte física fica para trás, mostrando a sua verdadeira personalidade, mesmo quando filme introduz-nos a Lisa (Amy Rutledge), uma possível paixão.

Estamos perante um dos slow-burn mais interessantes do ano, com um bom equilíbrio entre balanço e um terror relativamente discreto, acompanhada por uma banda sonora que perdura na calada da noite, enquanto constrói a sua narrativa para um último acto de levar as mãos à cabeça. Nunca uma cassete causou tanto mal desde Ring - A Maldição.

Nota Final: 4/5

19 de setembro de 2020

The Babysitter: Killer Queen (2020)


Com a quantidade de novos títulos adicionados à Netflix numa base semanal, é fácil deixar escapar alguns filmes que têm um enorme potencial de entretenimento puro, onde a diversão reina acima de tudo. Foi o caso de The Babysitter, que em 2017 tornou-se num dos filmes mais divertidos, mas menos falados no catálogo. O seu sucesso de nicho garantiu que McG fizesse uma sequela, com The Babysitter: Killer Queen.

Dois anos após os eventos sádicos, Cole (Judah Lewis) continua a viver a sua vida com o trauma da noite que a sua ama lhe traiu. Com o apoio da sua amiga Melanie (Emily Alyn Lind), este convence-o a ir até uma festa no lago, com o seu namorado Jimmy (Maximilian Acevedo) e os seus amigos Boom-Boom (Jennifer Foster) e Diego (Juliocesar Chavez). Mas numa reviravolta inesperada, o culto de sangue regressa, em busca novamente por Cole.


Tal como da última vez, a reviravolta que inicia o festival de morte, vem de uma forma tão inesperada, que quando dão por vocês, quase parece que foram atingidos por um camião; e apesar do seu registo algo repetitivo no que toca à estrutura da narrativa, existem novos elementos capazes de meter o filme lado-a-lado com a sua prequela.

Começando com a introdução de Phoebe (Jenna Ortega), uma nova aluna inserida num programa de reabilitação, que apresenta um lado mais rebelde à série, que tanto necessitava. Phoebe é acompanhada com muito mistério durante grande parte do filme e a sua química com Cole, faz com o regresso do membros originais do culto sejam mais dinâmicas, sobretudo quando fazem referências do filme anterior ou da cultura-pop em geral, ainda que algumas destas sejam relativamente datadas.


Entretanto, os novos cenários forçam uma fuga criativa, recorrendo a alguns truques de tanto divertidos como perigosos, onde não falta todo o sangue e gore que vai para além do esperado, conseguindo balancear um filme que, noutras circunstâncias, teria tudo para falhar. Mas McG e a sua equipa de argumentistas, da qual Brian Duffield não regressou, conseguiram expandir o pequeno universo de The Babysitter por caminhos diferentes, mas não inteiramente novos, realizando o que é talvez uma das séries de comédia-terror na era moderna do streaming.

Assim, The Babysitter: Killer Queen, é um filme deliciosamente focado em oferecer um espectáculo sangrento, onde novas e velhas personagens juntam-se para completar o ritual que lhes é devido. Mesmo tendo algumas falhas superficiais à vista, estes são compensados com uma aventura emocionante, repleto de risos e um bom serão, impossível de desgostar.

Nota Final: 4/5

18 de setembro de 2020

Sputnik (2020)

O cinema russo por vezes ganha um destaque mundial e por mais raro que seja, quase nunca desaponta, pelo menos no surrealismo dos conceitos que apresenta. Tal foi o caso de um mega-blockbuster chamado Guardians, que na altura surpreendeu o mundo e foi apelidado de ser o Vingadores russo; no ano passado o tão falado Why Don't You Just Die!, vencedor do Prémio MOTELX – Melhor Longa de Terror Europeia / Méliès d’Argent 2019; e agora Sputnik, que traz ao planeta Terra um ser do universo além.

Realizado por Egor Abramenko, na sua estreia nas longas-metragens, e escrito por Oleg Malovichko e Andrei Zolotarev, em Sputnik o ano é 1983, onde conhecemos Tatyana (Oksana Akinshina), uma psiquiatra sob investigação devido aos seus métodos menos convencionais. Recrutada pelo Coronel Semiradov (Fedor Bondarchuk), para falar com o único sobrevivente da tripulação, Konstantin (Pyotr Fyodorov), este que esconde dentro do seu corpo um ser alienígena.

Para quem se lembra de Vida Inteligente, um filme de 2017 que passou ao lado de muitos, rapidamente se apercebe de uma possível pseudo-sequela russa, mostrando aquilo que um extraterrestre é capaz de fazer quando chegasse cá. O paralelismo com a obra de culto O Primeiro Encontro, de Denis Villeneuve, também são existentes, conseguindo fazer uma mescla interessante da qual James Cameron estaria razoavelmente orgulhoso.

Tal como seria esperado, a sua sensibilidade da União Soviética demonstra uma abordagem muito fria e sombria de um grande acontecimento deste género, aliado a uma limitação tecnológica que permite que as personagens ganhem uma profundidade emocional perante a situação particular da qual se encontram. De facto, o filme faz muito para que as explicações sejam o mais científicas possível, com um foco igualmente grande na análise psicológica, movido por uma narrativa com alguns elementos dramáticos, ainda que estes sejam menos bem conseguidos, sobretudo durante a parte final que parece um pouco apressada.

Entretanto, é que louvar toda a experiência de terror que o filme propõe, enquanto conhecemos esta criatura espacial e como é estudada nas instalações industriais. Existe uma quantidade certa de violência, repleto de sangue e gore, muitas vezes remanescente do cinema de série-B, mas este é sobretudo contido numa frieza que jamais encontraríamos na sua versão espectacularmente fútil de Hollywood, que certamente iria reduzir a emoção em algo mais frenético.

Dito isto, Sputnik é um excelente esforço em trazer para a frente a qualidade do cinema russo, num contexto que com certeza irá agradar a fãs de género, principalmente aqueles que procuram uma proposta alternativa, valendo também pela possibilidade de ver as coisas noutra perspectiva que senão o patriotismo tradicional norte-americano.

Nota Final: 3.5/5 (originalmente 7/10)

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Originalmente publicado em Central Comics a 18 de Setembro de 2020.

16 de setembro de 2020

Scare Me (2020)


Josh Ruben é um homem com um currículo extenso, mais reconhecido pelo seu trabalho no popular site de comédia CollegeHumor.com, tendo enveredado por outros caminhos. Talvez um dos menos esperados era que escrevesse, realizasse e protagonizasse um filme da produção Shudder, a plataforma de streaming de terror (que ainda não chegou a Portugal!) com Scare Me, um filme muito, muito, curioso.

Fred (Ruben) é um argumentista que viaja até a uma cabana na floresta, em busca de paz para escrever o seu novo filme, sobre lobisomens. Lá, ele encontra Fanny (Aya Cash), uma famosa novelista, recentemente tornada uma autora best-seller com o a imprensa diz ser “o melhor livro de terror de sempre”: Durante uma queda de energia à noite, Fanny vai até casa de Fred para jogarem um jogo: Scare Me; onde terão que contar histórias assustadoras um ao outro.


Olhando para além da premissa simples de Scare Me, apercebemos-nos o quão trabalhado este exercício de acting é feito em frente dos nossos olhos, onde durante quase duas horas, somos levados pela imaginação destes contadores de histórias, como se de um acampamento se tratasse. Há igualmente uma questão de pensarmos quanto disto é improvisado, e é fácil de imaginar que uma boa parte dele foi pensado na hora, surgindo organicamente.

Longe de ser um filme tradicional, esta é uma obra que, mais que tudo, serve para demonstrar as capacidades criativas de Ruben, como também de Cash, que encaram as suas personagens com muita convicção, às vezes demasiada; provando que as nuances e os pequenos detalhes, como as vozes, os efeitos sonoros e, de vez em quando, os efeitos visuais, podem captar e manter a atenção de quem vê. Estes são, de longe, os aspectos mais divertidos do filme, onde cada ideia ganha uma vida onde é fácil nos deixarmos levar.


Scare Me não aborrece, apesar do seu conceito aparentemente simples, mas as suas quebras entre histórias são talvez a parte menos interessante do filme, que tentam ocupar o tempo até ao próximo conto, que podem contar com uma diversão que não irão encontrar noutros filmes do género. Talvez muitos irão considerar, não só a estrutura, mas também as decisões artísticas do filme como demasiado básicas para o efeito; enquanto outros irão encontrar uma obra com muita personalidade, pela sua abordagem ousada.

No fim, Scare Me é um filme com muito entretenimento, com uma batalha divertida entre duas pessoas altamente criativas, cujo único objectivo é divertir e assustar um pouco, prezado com uma ideia minimamente original e cheia de alma.


Nota Final: 3.5/5 (originalmente 7/10)

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Originalmente publicado em Central Comics a 16 de Setembro de 2020.

15 de setembro de 2020

Relic (2020)


O cinema australiano tem oferecido alguns dos filmes de terror mais marcantes do género, desde Wolf Creek (2005), a O Senhor Babadook (2014), este último realizado por Jennifer Kent, uma das mulheres que destacou o trabalho dos talentos femininos do cinema independente. Desta vez, com Relic, a realizadora e argumentista japonesa-australiana Natalie Erika James traz-nos uma proposta surpreendente.

Edna (Robyn Nevin) é uma senhora de idade, que sofre com um caso grave de demência. Quando a mesma desaparece, a sua filha Kay (Emily Mortimer) e a sua neta Sam (Bella Heathcote), viajam para a casa, em sua busca. Edna acaba por reaparecer, mas algo de errado parece-se estar a passar, iniciando uma viagem pelo sofrimento doença.


A subtileza no terror que Relic causa é impressionante, pois a mesma não é directamente assustadora, optando semear ideias, em forma de detalhes e pistas, não só deixando-nos a pensar o que se passa com Edna, mas também tudo aquilo que está em seu redor, estando este a deteriorar perante os seus olhos. Ao fazer isto, o verdadeiro medo vem dos nossos pensamentos e raciocínio, que tentam fazer sentido de tudo aquilo que vemos.

Natalie Erika James, na sua estreia nas longas-metragens, oferece um algo que vai muito mais além do cinema de terror tradicional, onde a presença inexistência de um monstro óbvio segue um caminho diferente, dando-nos uma história sobre o amor geracional de quebrar o coração, escondido nas entrelinhas de imagens perturbadoras, na forma de manifestações físicas Esta abordagem permite que tudo aquilo que vemos, ainda que seja de uma forma alegórica, se mantenha connosco durante muito depois do final da película e força-nos a fazer uma reflexão sobre a forma que tratamos a demência como um estigma.


Esta familiaridade facilita um relacionamento fácil entre o espectador e o filme; todos temos alguém que nos preocupamos e queremos protegê-las dos males que o mundo tem, e em Relic, o aperto de que uma variante destes eventos possam realmente acontecer a qualquer um de nós, mesmo sem os elementos mais sobrenaturais, certamente não irão deixar ninguém indiferente.

Assim, Relic mostra-se como um dos primeiros grandes filmes de terror da década, com um incrível elenco, unido com uma narrativa que se entranha na mente, dando por nós a gritar para as paredes. No fim, vão com certeza ter vontade de ir abraçar os vossos ente queridos, na esperança que não tenham uma experiência semelhante e com este filme presente na vossa cabeça para sempre.

Nota Final: 4.5/5 (originalmente 9/10)

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Originalmente publicado em Central Comics a 15 de Setembro de 2020.

14 de setembro de 2020

Saint Maud (2020)


A religião no terror sempre foi um tópico controverso no cinema, sobretudo da forma que os devotos são retratados, ou as consequências pela sua devoção oferecerem uma ideia contrária de o que consideram justas pelas sua fé. Isto é feito há décadas, com clássicos como A Semente do Diabo (1968) ou O Exorcista (1973), a serem os mais emblemáticos. Após ter feito furor em diversos festivais no final do ano passado, eis que a estreia da argumentista e realizadora britânica Rose Glass nas longas-metragens, com Saint Maud, chega finalmente ao grande público.

Maud (Morfydd Clark) é uma enfermeira privada, que tem uma grande devoção a Deus, à qual ela dá crédito por mudar a sua vida para um caminho melhor. Ela conhece a sua mais recente paciente, Amanda (Jennifer Ehle), à qual Maud está convencida que tem uma missão de salvar a sua alma, por todos os meios necessários.


Há um crescendo de eventos ao longo do filme, que desde cedo estabelecem quem Maud é e aquilo que ela representa, confrontada agora com alguém que necessita de alguma intervenção divina. O laço que Maud e Amanda criam, acaba por ser forte, com uma participação especial do grande Senhor do céu, até chegar a um ponto de ruptura.

Saint Maud é uma obra perturbadora, que deixa, assumidamente, calafrios até nos fãs mais assíduos do cinema de terror, não apenas pela abordagem obsessiva de Maud, como também a personificação da religião; esta que não é de todo exagerada, mas cuja mensagem é amplificada pelos visuais hipnotizastes, com uma atenção incrível ao detalhe.

As interpretações de Clark e Ehle, numa dinâmica que transcende para o espiritual, fazem com que estejamos num sofrimento constante de antecipação, à espera do próximo momento que nos irá chocar, fazer saltar da cadeira, ou ambos. Como se isso não bastasse, o visual é aliado a uma banda sonora de deixar os tímpanos a tremer, pelo medo que instaura.


Rose Glass, um dos novos talentos britânicos, oferece-nos uma obra-prima que olha para as suas influências como inspirações para algo maior, mais ousado e que decididamente será falado durante muitos anos, dando um novo rumo ao género, ele próprio repleto de devotos a um nível quase religioso.

Assim, Saint Maud é a prova que novas interpretações do terror são mais que bem-vindas, tendo a originalidade de olhar para a religião com outros olhos e um ver o ser humano como vaso humano frágil para o pecado que ele realmente é. Garantidamente será um dos novos filmes de culto que assentam como uma luva lado-a-lado com outros novos auteurs do terror, como Ari Aster, Kevin Phillips ou Natalie Erika James, numa estreia marcante.

Nota Final: 5/5 (originalmente 10/10)

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Originalmente publicado em Central Comics a 14 de Setembro de 2020.

13 de setembro de 2020

The Rental | O Segredo do Refúgio (2020)


Dave Franco, o mais novo dos três Franco’s, estreia-se pela primeira vez na cadeira de realizador com O Segredo do Refúgio, um filme que aparenta ser de terror mas que contém muito pouco do género.

Charlie (Dan Stevens) e Mina (Sheila Vand), são amigos e colegas de trabalho que convencem as suas caras metades, Michelle (Alison Brie) e Josh (Jeremy Allen White), a passar um fim-de-semana numa luxuosa casa com uma vista incrível mas no meio do nada. O que eles não sabem, é que este será o pior fim-de-semana das suas vidas.


Descrever O Segredo do Refúgio como um filme de terror é inexacto, por diversos motivos. O terror por si é quase inexistente, algo estranho numa película que não chega a hora e meia. Ainda mais estranho é tomar o seu tempo até que as coisas comecem a ficar interessantes, deixando-nos ansiosos com a antecipação de eventos que acontecem demasiado tarde para que queiramos saber. E, quando acontecem, tendem a ser confusos, sem qualquer motivo aparente ou explicação para o que estamos a ver. É na frustração e da má gestão de expectativas que o filme cria um sabor agridoce na boca.

Felizmente, o elenco reduzido, mas forte, demonstra uma qualidade insuperável, ainda mais quando nos apercebemos que três dos quatro actores principais já tiveram contacto com o cinema de terror moderno, com Stevens em The Guest, Brie em Horse Girl e Vand no incrível Uma Rapariga Regressa de Noite Sozinha a Casa; oferecendo uma experiência de tensão ocasional que acontece de uma forma minimamente orgânica e aceitável, pelo menos até as coisas descambarem de um drama familiar para um slasher.


O trabalho de Franco é também ele de uma qualidade superior, com a câmara frequentemente em “cima dos actores”, num registo muito pessoal e invasivo, o que também contribuí para alguma da claustrofobia causada pelo desconhecido. A mudança súbita e notável da banda sonora também ajuda. Na verdade, as influências de Franco demonstram um cineasta apreciador do terror, mas com alguns problemas em executar uma narrativa suficientemente consistente para se qualificar como um filme do género, algo que certamente merece ser revisto nos seus projectos futuros.

Com isto, O Segredo do Refúgio, é um filme que gostava de ser mais assustador, com um excelente conjunto de actores que carregam os pecados inegáveis de um argumento que necessitava de mais de trabalho, e um plano mais entusiasmante para nos cortar a respiração. Ainda assim, a mensagem de como nestes tempos temos uma confiança simplificada em desconhecidos, seja um condutor privado através de uma aplicação, seja o aluguer de uma casa, por mera conveniência, prova-nos que existe um potencial em explorar histórias do género.

Nota Final: 2.5/5 (originalmente 5/10)

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Originalmente publicado em Central Comics a 13 de Setembro de 2020.

11 de setembro de 2020

Historia de lo Oculto (2020)


Cristian Ponce é um dos mais recentes talentos argentinos, com um currículo versátil, desde curtas a séries de televisão, inclusive La Frecuencia Kirlian, um dos segredos mais bem guardados do nosso catálogo da Netflix. Com Historia de lo Oculto, este será marcado pela sua estreia no grande ecrã, que certamente abrirá novos caminhos para o cinema latino.

Este é o último programa do 60 Minutos Para a Meia-Noite, o mais famoso programa de investigação jornalística na televisão. Após várias polémicas, perdeu todos os apoios financeiros e a confiança da cadeia de televisão onde deixará de ser exibida. Este programa tem um convidado especial, Adrian Marcato (Germán Baudino), um homem que irá expor uma conspiração que liga o governo a um covil de bruxas, onde os acontecimentos mais inesperados podem acontecer.


A sua decisão de ter o filme maioritariamente a preto e branco, define um tom clássico a uma história que prende pelo seu valor intrigante. Será que as bruxas existem e têm uma influência nos altos cargos políticos? Ou será tudo uma fachada, apenas para causar uma histeria em massa, num programa cuja credibilidade já é irrelevante? Estas são as perguntas que ficam no ar, e que a cada momento, são pouco a pouco desvendadas, oferecendo alguma informação para que vejamos o puzzle inteiro, seja qual esse for.

Com uma curiosidade aguçada, o elenco, dividido em locais distintos, permite-nos ver as coisas por perspectivas algo diferentes, entre o apresentador e os convidados em estúdio, e os produtores do programa, esperando que toda a investigação que fizeram não seja em vão. Estes são os 60 minutos mais importantes da história do país, onde as revelações podem causar uma instabilidade política como nenhuma outra.


Cristian Ponce, por sua vez, injecta muita tensão nesta intriga por decifrar, onde acreditar nas personagens depende do quão convincentes são os seus argumentos e perceber até que ponto é tudo verdade. As consequências são reais e Ponce faz da sua realização, um filme mais thriller político e menos terror, onde os elementos sobrenaturais são subtis, com momentos que num abrir e fechar os olhos já se perderam; fazendo  para captar a nossa atenção para nos convencer que existe algo neste mundo que está incerto.

Assim, Historia de lo Oculto é uma das grandes surpresas do ano, num filme que tem tanta substância, quanto de estilo, onde é fácil cairmos na paranóia que o filme instala durante os 80 minutos de película. Até que ponto isto é inspirado por factos reais, nunca saberemos, mas a sua convicção que algo para além dos nossos olhos está em controlo, deixa-nos a tremer.

Nota Final: 4/5 (originalmente 8/10)

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Originalmente publicado em Central Comics a 11 de Setembro de 2020.

10 de setembro de 2020

Unhinged | Em Fúria (2020)


Todos temos dias maus, mas alguns podem levar alguém ao limite, sobretudo quando para isso basta uma buzinadela. É este o conceito básico do mais recente filme realizado por Derrick Borte e escrito por Carl Ellsworth, com o thriller Em Fúria.

Tom Cooper (Russell Crowe) é um homem instável que ultrapassa todas as barreiras quando é buzinado por Rachel (Caren Pistorius), uma mulher a lidar com uma altura difícil da sua vida, entre o divórcio com o seu marido e manter um trabalho estável. Tom, esperando que Rachel lhe pedisse desculpa pelo sucedido, faz com que esta tenha o pior dia da sua vida quando entra alvoroço violento, em que o homem fará de tudo para que ela sofra as consequências das suas acções.
Zero é a quantidade de empatia que temos por Tom, que escala o desentendimento para algo com proporções incríveis, ao ponto de assediar e perseguir uma pobre mulher, com a maior das intenções de destruir a sua vinda inteira. Por causa de uma buzinadela.


Na verdade, toda esta história poderá ser vista como uma alegoria, exagerada para os seus próprios efeitos de paródia e provar um ponto sobre a violência na estrada. Aliás, a sequência dos créditos iniciais do filme é ela maioritariamente composta por vídeos de noticiários e das redes sociais, onde vemos o tal “road rage” em efeito no mundo real. No entanto, duvido que todos tenham começado por algo tão banal e ignorante.

Enquanto Russell Crowe está sempre em modo grunhirão zangado, a sua capacidade de manter o mesmo registo de maníaco durante a hora e meia de filme é de aplaudir, mesmo que este contribua para o problema de oferecer violência gratuita em todos os momentos possíveis. Entretanto, é a personagem de Caren Pistorius por quem mais torcemos, que no meio de tanto sofrimento, é capaz de ultrapassar as dificuldades, mesmo que estas são longe de serem plausíveis.


Com uma narrativa facilmente quebrada com problemas que poderiam ser facilmente resolvidos com uma chamada à polícia logo no instante que acontecem, fica difícil gostar do desenvolvimento da mesma e como prossegue na sua missão de usar a força humana para aterrorizar uma pessoa.

Com isto, Em Fúria é um thriller que cai no esquecimento a partir dos créditos finais, salvo se for para lembrarmos de um Russell Crowe com um dad-bod, a ser a pessoa mais ruim à face da terra por, literalmente, razão nenhuma; deixado a sensação que o filme apenas existe para alimentar uma fantasia sádica qualquer. E isso não pode ser bom.

Nota Final: 1.5/5 (originalmente 3/10)

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Originalmente publicado em Central Comics a 10 de Setembro de 2020.